sábado, 2 de novembro de 2013

A história de GTA





Pois é: ainda não dá para parar de falar sobre GTA. E apesar do GTA V já ter saído há algum tempo, eu ainda não pretendo falar especialmente sobre a minha interpretação do significado social desse jogo. Isso vai merecer um post inteiro, e também as horas e horas que ainda me faltam pra zerá-lo.

Sendo assim, vamos fazer um pequeno tour: reflitamos sobre o sentido social da série GTA como um todo.

Vamos lá…



• As Polêmicas – “Como As Pessoas Pensam Que É” •


Carmageddon, 1997.


Por anos e anos, a série GTA foi perseguida e demonizada pela simples possibilidade de se roubar carros aleatórios e matar civis a esmo – atropelando, espancando, metralhando e roubando o dinheiro depois. Não é a coisa mais bonita do mundo, e ainda se pode fazer isso (com um realismo cada vez mais assustador) até hoje. Mas e daí…?

Parece que muitas pessoas desinformadas sobre o mundo dos jogos simplesmente reduzem o GTA a isso. A imagem de GTA que compartilham em seus imaginários coletivos é a de um jogo que “se ganha ponto matando pessoas na rua“. Bem, há missões em que ocorrem tiroteiros na rua. E talvez, o dinheiro possa ser considerado uma forma de pontuação (?). Mas é claro que não é nada disso que as pessoas tão pensando: me parece que, realmente, existe uma concepção distorcida de que GTA consiste num massacre de civis inocentes, com combos x20 e um highscore sangrento crescendo sob um cronômetro alucinante.

E não, não é isso. Existem jogos assim (como mostra a imagem do clássico Carmageddon ali em cima, por exemplo). Mas GTA, por mais controverso que suas missões possam ser, não é um jogo que se reduz a isso.




O conhecido advogado Jack Thompson, em sua cruzada insana contra os videogames (para ele, todos os jogadores são drogados).

Corrijam-me se eu estiver errado: nunca um GTA me obrigou a matar nenhum “civil inocente”. Há tiroteios em público. Perseguições descontroladas. Acidentes acontecem. Mas não consigo pensar em nenhuma missão em que é exigida a execução de pessoas aleatórias. Suspeito até mesmo ser possível zerar o jogo sem nunca arrancar ninguém de um carro adquirido com o dinheiro suado conquistado com trabalho duro no mundo dos videogames – use os carros que muitas vezes são oferecidos logo pelas próprias missões, ou mesmo tenha a decência de não apavorar ninguém e roubar apenas carros estacionados. Sinceramente: é assim mesmo que eu jogo o GTA V, por exemplo.

Eis, aliás, uma questão importante: é você quem toma as decisões aqui. Não de acordo com o que VOCÊ acha certo ou errado, mas como você acha que O PERSONAGEM acharia certo ou errado. E como sempre, todos os personagens do GTA vagam entre as linhas cinzentas da moralidade.


GTA V: Três Protagonistas. Você é os três. Você não é ninguém.



Ou seja: o GTA não te torna uma pessoa ruim, mas te coloca na pele de personagens que seguem rotinas duvidosas. No GTA V, isso fica especialmente claro: ao controlar três personagens diferentes (o Trevor, o Franklin e o Michael), o jogador é apenas uma abstração que conduz suas histórias e experiencia suas vivências. Aqui, fica claro: você vive os jogadores, e não os jogadores vivem você no mundo do jogo. Está dando pra entender? Eles têm personalidades próprias e você as vive e conduz. Não são eles que são a expressão da sua personalidade. Dessa forma, você vive criminosos, assassinos e sociopatas – mas isso não quer dizer que você, no mundo real, seja algo próximo de algum deles.




Trevor, a abominação videogamística. (e olha que eu peguei uma imagem leve…)



Enfim, pra finalizar, que fique claro: a indústria do videogame tem grandes influências na sociedade e nas pessoas – sobretudo as mais jovens. A violência, mesmo que virtual, expressa em formas de arte (seja videogame, cinema, literatura…), é algo a se manter sempre em observação. É preciso ter uma visão crítica do que as coisas representam, induzem ou estimulam, mas é preciso também ter cuidado pra não cair em visões simplistas e reducionistas, ou mesmo na censura. Nem tudo é errado e inaceitável. Mas nem tudo pode ser permitido.

Fiquemos de olhos abertos para reconhecermos esses limites. E já que estamos falando no “verdadeiro sentido” de uma obra controversa como o GTA… vamos tentar formular o que ele realmente significa, para além da mera violência sem sentido.



• As Sátiras – “Como Realmente É” •




Repleto de propagandas ridículas, eis o Times Square de “Liberty City”.

Todo mundo conhece os termos “sátira” e “paródia“, mas antes vamos dar uma revisitada pra organizar isso aqui.

Resumidamente: a sátira é um gênero artístico que consiste em expor ao ridículo toda a desgraça da situação humana. Toda forma de vício, estupidez e fracasso, é jogada na cara em um formato quase que de caricatura, funcionando como uma crítica ácida aos absurdos da vida. O objetivo: nos envergonhar e nos fazer rir (para não chorar) de todos os nossos defeitos, pra talvez assim aprendermos a reconhecê-los e superá-los.

A paródia, por sua vez, é a imitação de outras formas de arte. É uma “imitação” de conceitos e estilos que já conhecemos, usando clichês e caricaturas pra fazer uma crítica (e por que não uma homenagem?) aos tempos e gêneros e estilos.

Juntando os dois: a sátira, de certa forma, é uma paródia da própria vida. E a série GTA não apenas é uma sátira das nossas vidas, como também uma paródia em referência a diversos gêneros, tempos e estilos.


GTA III expressando sua vibe.



O GTA III (2001), por exemplo, o primeiro GTA em 3D (e o jogo que revolucionou a liberdade do mundo-aberto no videogame), se passa nos anos 2000 na paródia de Nova York, Liberty City. O jogo tem um clima nova iorquino de máfias contemporâneas, puxando um charme Martin Scorcese de ser.




GTA: Vice City. Só de olhar essa capa, já me sinto lá.

O GTA seguinte, o Vice City (2002), trata de captar a vibe criminosa de Miami nos anos 80. Conexão cultura-pop imediata: Scarface (Brian DePalma, 1983). Com o charme de neon rosa e rádios oitentistas, o GTA: Vice City nos guia pelas gangues da América tropical e o submundo do crime que não usa mais roupas escuras e encomenda assassinatos em tardes cinzentas – agora é camisa havaiana, cordão de ouro e tiroteios em dias ensolarados, com direito a corpos jogados no mar pra fora de iates de luxo. Carregando centenas de referências cinematográficas a tudo que remete a esse tempo e espaço, o GTA: Vice City expressa o espírito uma era.


GTA: San Andreas. SINTA essa imagem.
Você está no entardecer de um gueto de Los Angeles nos anos 90.



E então, eis GTA: San Andreas. Em 2004, GTA: San Andreas resolveu captar o surto de gangues dos anos 90 em Los Angeles (no jogo, representada por Los Santos). Como se não bastasse a vibe já bastante específica, San Andreas resolveu respresentar toda a região da Califórnia, com áreas praticamente rurais, San Fierro como São Francisco (com toda sua descoladeza e florescer tecnológico) e até mesmo pegando emprestado Las Vegas (com suas máfias dos Cassinos) e os desertos de Nevada como referência para Las Venturas. O resultado disso é não apenas uma infinidade de homenagens, épocas e paródias, como também a representação satírica de variados esteriótipos americanos. Novamente, GTA se supera em captar o espírito de uma era.


Não se trata só de gangue. Esse hippie doido de San Andreas nos manda numas missões bem esquisitas…

Depois disso, veio um novo marco para a série GTA. Em 2008, para as novas gerações de console (Xbox 360 e PS3), veio o Grand Theft Auto IV – dessa vez, com um retorno remasterizado para a cidade de Liberty City.

Não vejo grandes marcos de estilo pro GTA IV – ele não me parece capturar o espírito de um tempo e espaço específicos, e nem percebo grandes referências estilísticas nos rumos que o jogo toma. No entanto, o GTA IV me parece um marco na maturidade satírica da série GTA. Embora sua história não me pareça particularmente expressiva (neo-noir? imigração e desilusão? não vejo grandes temas), o GTA IV parece largar a zoeira aberta e paródica dos outros jogos e tomar rumos de realismo não apenas na história e na jogabilidade, como também no tom ácido e único do seu humor. As propagandas espalhadas pelo GTA IV, além de suas rádios brutalmente cômicas e caricatas, me parecem dar as alfinetadas mais afiadas de toda série GTA até então.







E então, vieram as expansões: Episodes From Liberty City.

As histórias de “Lost & Damned” e “The Ballad of Gay Tony” revisitam o universo do GTA IV e dessa vez com muito mais estilo próprio.

Em Lost & Damned, entra a vibe decadente de motoqueiros, punks, roqueiros e transgressores urbanos fracassados. No The Ballad of Gay Tony, a diversidade frenética da América moderna – gays, árabes, italianos, latinos, negros, asiáticos, e a coisa toda num caldeirão borbulhante pra ganhar dinheiro fácil. O Lost & Damned é bruto, bêbado e de ressaca, americanão e oldschool. O Ballad of Gay Tony é surtado e ensolarado, depois mergulhando no submundo da vida noturna das baladas de umamegalópole corrompida. Ambos os jogos, cada um com suas identidades muito próprias, escrotizam com os Estados Unidos lindamente, e te colocam pra subir na vida num universo caótico e violento.

Foi graças aos Episódios de Liberty City que eu retomei os ânimos com um GTA IV que me parecia inexpressivo e monótono, e me toquei que tudo aquilo era uma enorme sátira moderna em formato de videogame. Mais do que um jogo de “ganhar ponto matando pessoa“, GTA estava se provando como uma paródia cáustica das nossas próprias vidas – e isso é mais saudável e importante socialmente do que muita gente deve pensar dessa série tão perseguida e que, finalmente, começa a ser reconhecida e respeitada.

Que venha o GTA V.




GTA V, 2013.

Bem, eu já falei demais e o GTA V certamente merecerá um post próprio, analisando toda a sua grandiosidade satírica e a infinidade de questões pelas quais circulam seus três diferentes personagens.

Mas, logo de cara, dá pra dizer o tipo de coisa levantada como questão: o GTA V é a plena expressão americanóide de um zeitgeist mundial. Desesperadamente morderno, o GTA V parece captar exatamente o momento em que estamos, no mundo, NESSE INSTANTE.

Isso envolve crises existenciais e a desilusão frustrada das riquezas fúteis e criminosas do protagonista Michael. O substrato gansgta dos anos 90 que ainda se estica e se manifesta através das desventuras do amigo Franklin. E através de Trevor, o submundo doente do americano white-trash e primitivo, perdido e deslocado do mundo contemporâneo.

Há uma constante sensação de urgência para alcançar os próprios tempos nesse GTA V, e parece que é exatamente disso que ele se trata. Ele capta esse momento de crise mundial, econômica e política, manifestações sociais e alienação e internet e hipervelocidade e riqueza extrema e pobreza extrema e tudo conectado e embaralhado – tudo isso pra mostar que somos um emaranhado caótico que nem consegue mais entender onde é que está.




Lugarzinho complicado…

Se você reparar, boa parte dos personagens de GTA V são desiludidos, e muitos do nossos colegas criminosos são sujeitos explicitamente “ANTI-SISTEMA“. Eles não se veem apenas como meros bandidos – eles são revolucionários contra um sistema hipócrita e fracassado. As pessoas são estúpidas e ridículas, os governos são corruptos, as corporações são doentes e manipuladoras. Debaixo de muita maquiagem bonita e dias ensolarados, a cidade de Los Santos do GTA V é um enorme fracasso – uma bomba de caos social prestes a explodir. E nós, ao longo do jogo, brincamos de trocar tiros cercados de pavios.

(OBS.: é interessante notar também no mínimo dois personagens importantes, que são explicitamente familiarizados com manipulação e corrupção: em outras palavras, nerds de teorias de conspiração. Ron, parceiro do protagonista Trevor, é um viciado em teorias de conspiração envolvendo espionagem, illuminati e alienígenas reptilianos. Lester, outro personagem crucial, tem pôsters de teoria de conspiração em sua casa e trama missões bizarras e radicalmente anti-sistema, encomendando assassinatos e atos terroristas contracorporações gananciosas – tudo isso manipulando e lucrando com o mercado de ações.)

Mas enfim… já falei demais e o GTA V fica pra depois.

Vamos tentar concluir o que é a série GTA como um todo…

• CONCLUSÃO •





Moral da história: a série GTA não se trata apenas de imoralidades e violência gratuita, e sim de uma poderosa sátira moderna e cáustica. Tapa na cara da sociedade – e pra todos os lados.

É claro que não é o jogo mais bonito e educativo do mundo, mas através desse humor negro e irreverente, o jogo me parece deixar mais um sentimento de exposição caricata e cômica do que qualquer tipo de glorificação do crime e da matança. Pelo contrário. Pra mim, o GTA é justamente a exposição do submundo da cultura americana (mesmo que faça isso de forma divertida e estilosa), com os exemplos mais baixos da ruína que a nossa sociedade pode chegar. Pra mim, isso não é glorificação alguma. Se é alguma coisa, vejo mais como um alerta: tá todo mundo idiota num ciclo perigoso e infinito de violência, que no final não chega a lugar nenhum (nada mais normal do que ser traído ou ter amigos mortos nas histórias do GTA).

Enfim, com o sucesso do GTA V e a diminuição das controvérsias do mundo do videogame, tenho a impressão de que essa visão simplista está acabando. O videogame e seus jogadores estão aos poucos sendo vistos de forma mais matura. E que fique claro: esses jogos não são pra psicopatas alienados e crianças desamparadas, pois a influência é sempre mais fácil aos que carecem de maturidade e bom-senso.

Bem, sempre vai haver sensacionalismo midiático (como o caso do menino suspeito de assassinato, que jogava Assassin’s Creed) e visões radicais e simplistas, mas espero que aos poucos se pense duas vezes antes de julgar o valor social de obras violentas, do cinema ou do videogame ou de qualquer outra mídia. Como disse: nem tudo é inerentemente condenável, mas nem tudo pode ser permitido. A única coisa que deve ser generalizada, é isso: tudo deve ser pensado. E mais de uma vez.

E pra concluir, se você parar pra pensar… talvez GTA não faça tão mal assim.

E não duvido que seja inclusive saudável.

Fonte: Filmes e Games